SABOR DE LARANJA
Fernando Augusto Magno
Meu verso nasce duro como pedra
Às vezes áspero e pontudo.
Preciso cortar. Esculpir. Bater forte. Ajeitar-lhe um jeito.
Tem vez é fácil de trabalhar.
Outros há, dura tempo.
Bem que gostaria de escrevê-los como quem chupa laranja:
Sentindo o caldo a escorrer-me macio dentro da boca.
Encontramos o poema “Sabor de laranja” no livro O DIA DO CANTO IMAGINADO. Segundo Carmen Felicetti, a poesia de Magno é madura, firme, musical e moderna, que encontra em nós todas suas ressonâncias.
O poema acima apresenta um discurso metalinguístico. Através de comparações “duro como pedra”, “como quem chupa laranja” e sinestesias “duro, áspero , pontudo, macio” o poeta questiona seu fazer poético. As antíteses “Tem vez é fácil de trabalhar. Outros há, dura tempo” revelam a eterna dialética entre o ideal e o real, entre o ser e o não-ser da poesia.
POESIA I
Gustavo Wider
A poesia é cíclica
imprevista a inspiração
às vezes nos vem a preencher vazios
outras, por acúmulo à emoção.
(eu vi uma esperança esmagada no chão)
Às vezes nos assoma intempestiva
e plena
em outras, desgruda-se das palavras
foge, escoa-se entre rimas
e tanto se esquiva
que nem vale a pena…
(e a esperança morreu esmagada no chão)
POESIA II
Gustavo Wider
A poesia mora nas palavras
assim como o reflexo no cristal
iluminado
multifacetado,
há sempre um ângulo em que o cristal
emite uma luz unidirecional,
assim como, das palavras, a poesia.
A poesia mora nas palavras
Assim como uma sombra existe, imanente
Imersa na escuridão
Depende só de percepção
Poesia I e Poesia II abrem o livro PORTAS ABERTAS de Gustavo Wider, poeta petropolitano cujos poemas ” são, em sua quase totalidade, modernos, de forma livre por onde sua inspiração flui leve e solta”.
No primeiro poema, Gustavo declara que a poesia é cíclica, que às vezes é “ plena e em outras foge, esquiva-se “. Essa ambigüidade revelada pelo autor demonstra que a poesia depende da modalidade de ser do homem. Em sua interioridade, o homem é poesia e a expressão poética pode se manifestar ou não, depende do momento e da inspiração para traduzir as sensibilidades e paixões.
No segundo poema, Gustavo enfatiza que a poesia mora nas palavras assim como o reflexo no cristal e poeta é aquele que é capaz de explorar o poético nos signos lingüísticos e através deles criar imagens múltiplas.
A poesia não existe por si só, ela existe através de um diálogo com o outro. Ela é um código, cujo deciframento depende da leitura que se faz. Ler é uma maneira de reescrever o texto, apreendê-lo, percebê-lo, já que a poesia é um espaço aberto, habitado pelo silêncio e pelo nada e, como sabemos, o nada é surpreendentemente ativo:”Depende só de percepção”.
EXERGO
Murilo Mendes (1971)
Lacerado pelas palavras-bacantes
Visíveis tácteis audíveis
Orfeu
Impede mesmo assim sua diáspora
Mantendo-lhes o nervo & a ságoma
Orfeu Orftu Orfele
Orfnós Orfvós Orfeles.
Para uma compreensão do texto é necessário apreender Orfeu como poeta e como mito. No primeiro verso encontramos o poeta em sua luta com as palavras, o que é intensificado pelo adjetivo “lacerado”. No segundo verso as palavras estão personificadas, elas são ”visíveis, táteis, audíveis”.
Orfeu, dilacerado pelas tentações, demonstra que as visões do mito não acabariam, pelo contrário, permaneceriam . Isto nos é demonstrado no quinto verso “mantendo-lhes o nervo ( a tensão poética) & a ságoma ( palavra italiana que significa no poema silhueta, perfil ).
ORF = POESIA= ENTRETEXTO (poeticidade).
ORF-eu, ORF-tu, ORF-ele, ORF-nós, ORF-vós infere uma idéia de atemporalização, de infinito. É com ORF-eles que se consegue finalmente a totalidade .
Nesse poema encontramos a auto-afirmação épico-existencial de um Murilo Mendes, fundamente sintonizado com o seu tempo, isto é, de um Murilo que se funde com todos os homens do “Eu-coletivo” que vive em ORFEU. Um poeta que, apesar de dilacerado pela luta que mantém com as palavras, não se deixa atingir pela diáspora: permanece uno e íntegro como o exige a poesia.
ANTES DO NOME
Adélia Prado
Não me importa a palavra, esta corriqueira,
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
O “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus, cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
O poema pertence ao livro BAGAGEM e apresenta uma distribuição irregular de versos brancos e livres, o que o insere dentro da estética modernista.
A alusão à sintaxe, no segundo verso, está associada às inter-relações entre as palavras que compõem o texto e suas diferentes funções.
O poema demonstra a eterna luta dos poetas com a palavra, que assume vários significados dentro do texto. Adélia não quer a palavra corriqueira, mas a surda-muda, a que foi inventada para ser calada. Na poesia não cabe o vulgar, mas a angústia do não-ser que é o nada e como sabemos o nada é o percurso para o ser.
Adélia chama à atenção para a carga significativa de cada palavra dentro do verso ao mesmo tempo que declara a dificuldade de expressar o que se sente e quando se consegue é “puro espanto e terror”. É nesse questionamento da linguagem que reside a poeticidade do poema.
Conforme vimos, os poemas acima se identificam quanto à escolha da temática, a despeito das óbvias e inevitáveis diferenças que os distinguem entre si.
Todos indagam sobre o ser da literatura, a obra em si mesma, um discurso sobre outro discurso – metalinguagem – um questionamento da própria obra, que Drumond faz tão bem nesses versos:
“Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
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Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
Tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres.
Trouxeste a chave?