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Carmen Felicetti

Biografia

– Natural de Viçosa – MG
– Licenciada em Letras Anglo-Germânicas pela UCP (1962)
– Bacharel em Direito pela UCP (1994)
– Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (Colégio Estadual D. Pedro II Liceu Municipal, Instituto Carlos A. Werneck e Colégio Sta Isabel). Lecionou ainda, nos Colégios Sta Catarina e Ipiranga, e foi, por 10 anos, coordenadora do Miami English Course.

Acalanto do Mar

Linda rede azul e verde
Azul e verde é o mar
Uma ponta em Cabo Frio
A outra, onde estará?
A sua franja branquinha
De renda do Ceará
Vai se arrastando na areia
Num doce pra lá pra cá.
O vento a embala fraco
O vento a embala forte
Depende se vem do sul
Depende se vem do norte.
O pescador no seu ventre
Todo dia arrisca a sorte
A sua trama é tecida
Com fios de vida e morte.
Á noite a voz da sereia
O marinheiro convida
Para dormir e sonhar,
Deitar no fundo da rede
E enroscar o seu corpo
No corpo de Iemanjá.
E vai e ondula e oscila
E vem balança e tonteia
E sua renda branquinha
Risca um bordado na areia.
Linda rede azul e verde
Azul e verde é o mar
Uma ponta em Cabo Frio
A outra, onde estará?

De repente

De repente perdeste o perfume
O lume
A embriaguez
O canto
Todo o encanto

De repente escondeste o avesso
Travesso que és
E entraste na concha obscura
Da censura

De repente te cobriste de luto
Absoluto
E secaste teu pranto
E até espantaste o espanto

De repente fugiu-te a alegria
Vadia
Do riso irreverente
Permanente

De repente quebraste o quebranto
E então calaste
Tua voz de acalanto
E fechaste tuas portas,
Comportas…

De repente
Te deportas
Te exportas
Não te importas

Porque, de repente,
Assim, de repente,
Voltaste a ser
Só!

Cheiro de Minas

Minha saudade tem cheiros…
Cheiro de capim molhado
Cheiro de capim melado
Capim gordura e limão
Capim cheiroso pisado…

Minha saudade tem cheiros…
Cheiro morno de fumaça
Do trem Maria-fumaça
Que vem chiando sua asma
Vem cuspindo desaforos
Espalhando chispa e brasa
Que vem, que tosse e que passa.

Minha saudade tem cheiros…
Cheiro forte de petúnia
Numa tarde de verão
Cheiro ardido de cipreste
Em noite de assombração
Cheiro doce de promessas:
Jabuticabeira em flor.
Cheiro de um corpo moreno
Que um dia me deu amor
Cheiro fresquinho de chuva
Escorrendo no quintal
Cheiro espumante de leite,
Cheiro gordo de curral.

Minha saudade tem cheiros…
Cheiro bom de goiabada
Fazendo bolhas no tacho
Cheiro de café torrando
Cheiro de café moendo
Cheiro de café fazendo
Fazendo arder a saudade!

Lenda

Menina, vai, tranca as portas
Abaixa todas tramelas
Pois o boto se aproxima
Pra forçar tuas janelas

Não deixes que ele te engane
Foge de suas balelas
Apega-te a todos os santos
Não apagues tuas velas

Fecha o ouvido a seus cantos
Eles só trazem mazelas
Amarram com seus quebrantos
Desavisadas donzelas

Ele tem olhos de anjo
E suas formas são belas
Vai te tomar pouco a pouco
O corpo que lhe revelas

Depois sumirá nas águas
Enquanto te descabelas…
Menina, vai, tranca as portas
Abaixa todas tramelas!

Dentro de mim

Dentro de mim há silêncios
Fechados em seus desertos

Dentro de mim há gemidos
Sepultados quando vivos

Dentro de mim há mensagens
Que se perderam na espera

Dentro de mim há loucuras
Trancadas em suas celas

Dentro de mim há um canto
Sufocado em seu escuro

Dentro de mim há ternuras
Enclausuradas por muro

Dentro de mim houve um sonho
Que mataram sem aviso

Dentro de mim tudo é pranto
Fora de mim, tudo é riso.

Engano

Preparei meu terreno docemente
Escolhi entre aromas e matizes
Plantei dentro de mim tua semente
E sonhei com floradas tão felizes

A árvore cresceu completamente
Encrustou em meu ser suas raízes
Rasgou todo meu corpo em cicatrizes
Sugou-me toda seiva, lentamente…

Hoje vejo, vazia e exaurida,
Que troquei a semente por engano
Que enganada passei o tempo inteiro!

Só depois que perdi a minha vida
Adiando a primavera todo ano
É que vi que plantei em espinheiro!

Incesto

Somos iguais
Temos a mesma seiva
Mesmos mistérios
Mesmo DNA
Mesma inconstância
Mesma natureza
E mesma força interior
Das correntezas

Tudo em nós se assemelha
E se confunde
Nesse nosso eterno murmurar
E vivemos esse amor incestuoso
Eu e você
Meu irmão-gêmeo
Mar!

Telhados de vidro

 

A gata grita na noite
E a noite é dentro de mim

A gata grita lá fora
E o fora é dentro de mim

A gata grita no telhado
E o grito é dentro de mim

A gata grita seu grito
E a gata é dentro de mim.

Poema à menina brincando na praia

Há uma luz travessa
Nos teus olhos de coelha

Há um ardor de festa
No teu peito de gazela

Há um brilho-promessa
Na tua testa de águia

Há incêndio de girassóis
Na tua alma de andorinha

Que apagará, menina?

No Limiar

Nem nos faltou o olhar
Que esse veio
Confessando
Pedindo
Entregando

Nem nos faltou a palavra
Que essa veio
Livre
Leve
Louca

Nem nos faltou o amor
Que esse veio
Queimando
Mordendo
Gritando

Só nos faltou a coragem
O gesto de abrir as comportas
As pistas
Os portos
As portas

Odalisca

Deitada num colchão d’água
Envolta em lençol de nuvens
As bolhas vão-se agrupando
São milhares de arco-íris
Incendiando seu banho

A esponja corre seu corpo
O ar recende a essências
Lavanda, almíscar, baunilha…
Preguiça
Morna delícia
A embalar o seu sono.

E no harém ancestral
Destrança as tranças
Levanta
E arrasta num manto d’água
Toda sua sedução
Vai caminhando entre espumas
Em meio à fumaça e brumas
Em busca do seu sultão.

Ofídica

O horóscopo chinês avisa:
Sou serpente!
E posso me enroscar suavemente
E ungir teu corpo com meu visgo
E te levar em vôos infinitos
Na borboleta da língua bipartida
E com olhar de cristal,
Preso de encanto,
Florir tuas noites com faíscas.

Não te iludas, no entanto,
Sou serpente!
Dentro de mim destilo
Um milenar veneno
E, às vezes, me enrodilho toda
No meu canto
Espiral de manha e astúcia,
Mola contida
À espreita do momento
Em que, vencido,
Sentirás a dor,
A agonia
Da “overdose” da minha mordida!

Busca

Procuro a palavra certa
A do arrepio, a da festa.
Não está o dicionário
Na ponta azul da estrela
Nas flores que alegram o campo
Nas velas que louvam deuses
Nem nas velas que navegam
Arrepiadas de ventos.

A palavra que me fere
Porque se nega e se ausenta
Se esconde de mim em mim
Dentro do meu pensamento.
Então me viro do avesso
Acordo sonhos contidos
Abro o lacre dos segredos
Acendo meu lado escuro…

Onde a palavra perfeita
Que inutilmente procuro?

Passatempo

Queria partilhar
E partir o pão
Mas
Eu sou eu
E você é você

Brincamos de tanta coisa…
Até brincamos de amar
Vou-me enredando no enredo
Chego quase a acreditar.

Mas aí vem o “plim-plim”
Do intervalo comercial
E lembro que somos sós
Eu e você
Nunca nós
Nunca um par.

Voltemos, pois ao folguedo
Que pra você sou brinquedo
De montar
E desmontar…

Jabuticabeira

A brisa brinca e espalha
O cheiro forte do cio das flores
Atraindo os insetos
Ao ritual da fecundação

E as flores desvirginadas
Murcham sobre seus ventres
Que guardam promessas
De néctar e mel

E nossos olhos-criança
Gulosamente acompanham
Toda gestação

As barriguinhas crescidas
Lustrosas, redondas, negras
Se oferecem a nossos dentes-bisturi
E nossas bocas-parteiras
Estouram bolsas
E ávidas revelam
O saboroso mistério da vida.

Poeta

Roda dos ventos
Paira sobre as salinas
Altiva, ereta!
Cumpres teu destino
Não importa que ventos soprem,
Roda dos ventos, poeta!
Se vendavais te fustigam,
Mais produzes
E arrancas em borbotões
Do fundo de tuas entranhas
As lágrimas
Que se espalham
E, sob o sol criador,
Se tornam o sal da terra!

Relógio

Na noite insone
O relógio
Vai trabalhando esquadros,
Vai fazendo continências
A invisíveis patentes.
Agora os pés de Carlitos
Em cadente sincronia
Caminham no tique-taque
Até sumirem na esquina
(Só não some essa apatia)

Partiu-se o queijo ao meio
Partiu-se o queijo em um quarto…
Ah! Partiu-se tanta coisa!
É melhor ir para o quarto!

Ressaca

Noite na praia coberta
De tormenta e arrepio

O vento é um caramujo
Resmungando em suas dobras
Sons de tambor e maraca
(Ou é o mar de ressaca?)

Silvos, sibilos, gemidos
Sob um céu de quadro-negro
Que os raios riscam de giz

Guerreiros cavalgam ondas
São fantasmas de tamoios
Velando seus sambaquis.

O vendedor de pássaros

O Seu José, carcereiro,
Vende pássaros, gaiolas
Todo tipo de alçapões.
É Seu José Carcereiro
Especialista em prisões.

Mas o que me causa espanto
E até perplexidade
É ele dar preço ao canto
Á vida e à liberdade!

Vento

Vem do vale esse vento
Inchando de tanta vida
Traz cheiros de água e mato
Sons misturados de pios
Algazarras de quintais.
Tudo vem difuso e vago
É só o vento e seu manto
Desalinhando memórias
Roçando saudade em sono
Bulindo hastes rosadas
No mar de capim melado

E o frio é um acorde fino
De violino
Arrepiando as pernas da minha infância.

Teus olhos

Verdes olhos, verdes rios
Verdes contas, verdes lanças
Inundaram minha vida
Com sonhos e esperanças.

Olhos verdes tão macios
Relva verde, aveludada
Nosso amor, também foi verde
Verde folha arrebatada.

Olhos verdes tão profundos
Verdes olhos, verde mar
Nosso amor também foi verde
Nem chegou a madurar.

Olhos verdes que embriagam
Vinho verde, inebriante
Nosso amor também foi verde
Morreu verde, verde instante.

Verdes olhos, lenço verde
Que me acena em despedida
O nosso amor morreu verde
Verde rosa não colhida.

Olhos verdes, verdes sonhos
Que morreram bem criança
Nosso amor também foi verde
Verde morreu, de esperança!

Tsunami

No princípio, a terra rangeu os dentes
E águas amedrontadas
Fugiram em giros
Arrastando as saias e seus babados…

Na praia, Deus resolveu levantá-las
Só para dar uma espiada…

Quando soltou,
Mostrou como se desinventa o mundo!

Marta

Preciso dar uma mexida boa no meu guarda roupa – pensava ela enquanto pegava bolsa e cartões de crédito para enfrentar butiques e shoppings.
Por sua cabeça rodava a agenda de festas e confraternizações de fim de ano. Nenhuma, no entanto, mais importante do que a da empresa em que Júlio trabalhava. foram doze anos de intensa dedicação ao Departamento Jurídico da firma. Finalmente, conseguira o almejado destaque: funcionário do ano, com todas as pompas e cerimônias a que fizera jus.
Minha roupa tem que ser um arraso! Devo estar à altura de meu marido. Nada de “pretinho básico”; quero um vestido “fashion”, deslumbrante, nem que tenha que estourar os cartões!
Do pensamento ao ato foi um pulo e depois de horas de tira e põe roupa, Marta se decidiu por um longo magnífico, de um verde que lhe ressaltava os olhos e contrastava com os negros cabelos.
Na grande noite, Júlio, pronto e impecável, esperava paciente pelo – Vamos?- de Marta.
Daí a muito, ela surgiu diante dele, prontíssima e perguntou:- como estou? Ele fechou o jornal que folheava, levantou-se, lançou-lhe um rápido olhar e respondeu: – Bem, como sempre.
– Só isso?! Ela pensou. Tanto preparo, nenhum detalhe esquecido e… só isso? Marta engoliu a decepção e procurou disfarçá-la para não atrapalhar a noite de festa. Foi superando aos poucos a insegurança que tomou conta dela. É bem verdade que para isso muito contribuíram os olhares de admiração e elogios da ala masculina da empresa.
Júlio estava feliz, sorridente, adorável. Dançaram a noite inteira, com as interrupções do jantar e da solenidade de entrega da premiação. Em casa, puderam dar expansão ao seu amor numa entrga mútua, apaixonada, tórrida, deliciosa!
Marta justificou consigo mesma o que acontecera: ele não gostara do vestido; tinha esse direito! Para não magoá-la com um comentário negativo, não tinha feito comentário algum. Fora até uma atitude gentil de sua parte.
Dobrou o vestido, caro como ele só, dentro da caixa e disse: esse eu não uso mais!
Na semana seguinte haveria o baile de gala do clube que freqüentavam.
Se pudesse, não iria: sabia que Lena estaria lá.
Lena era a pedra no seu sapato. Foram colegas de colégio e sempre disputaram os mesmos objetivos. Muitos foram atingidos por Lena mas, na disputa por Júlio, Marta vencera. A “perua” da Lena, no entanto, não conformada com a perda, vivia jogando charme para Júlio, fazendo caras e bocas, lançando olhares convidativos, para desespero de Marta – Eu ainda mato aquela desgraçada!
Júlio, como todo homem, a-do-ra-va se sentir paquerado. – E até que a danadinha não é de se jogar fora, admitia ressentida, indo logo buscar um imenso rol de defeitos com os quais cobria alguma coisa de positivo que pudesse enxergar na rival.
Embora se rasgasse de ciúmes, Marta não perdia a pose. Fingia não perceber as investidas de Lena e com ela trocava cumprimentos, risos falsos, alfinetadas…
O encontro se deu na porta do clube. Pior, porque teriam que trocar algumas palavras. Pior, ainda, porque Lena vestia um vestido igual, igualzinho àquele do episódio anterior. – Eu mato aquela vendedora que me garantiu que o modelo era exclusivo!
-Nossa! Como você está bonita, Lena! Júlio disse, e emendou:-e muito elegante nesse lindo vestido!
Ninguém entendeu nada quando Marta, subitamente entrou num táxi que acabara de deixar um casal e sumiu dentro da noite.