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Fernando Antônio Py de Mello e Silva

Biografia

Conhecido como Fernando Py (Rio de Janeiro, 13 de junho de 1935 – 21 de maio de 2020) foi um poeta, crítico literário e tradutor brasileiro, traduzindo a íntegra da monumental obra proustiana Em Busca do Tempo Perdido.
Diplomado em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro, estreou-se nas letras em 1962, com a coletânea de poemas “Aurora de Vidro”. 

É também autor duma extensa bibliografia das primeiras colaborações jornalísticas de Carlos Drummond de Andrade.
Autor de numerosas obras:
Aurora de Vidro (poesia). Rio de Janeiro, Livraria São José, 1962;
A construção e a crise (poesia). Rio de Janeiro, Simões Edições, 1969;
4 poetas modernos (poesia, em colaboração). Rio de Janeiro, Cátedra, 1976;
Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade (pesquisa). Rio de Janeiro, José Olympio / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980 ( 2ª edição, aumentada. Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002);
Vozes do corpo (poesia). Rio de Janeiro, Fontana, 1981;
Dezoito sextinas para mulheres de outrora (poesia). Recife, Edições Pirata, 1981;
Chão da crítica (jornalismo literário). Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984;
Antiuniverso (poema). Rio de Janeiro, Sette Letras / Petrópolis. Editora Firmo, 1994;
Carlos Drummond de Andrade. poesia (antologia comentada, em colaboração com Pedro Lyra). Rio de Janeiro, AGIR, 1994 (2ª edição. 1998) [Col. Nossos Clássicos, 118]
Sol nenhum (poesia). Rio de Janeiro, UAPÊ, 1998;
Antologia poética (40 anos de poesia. 1959-1999). Petrópolis, Poiésis, 2000;
Sentimento da morte & Poemas anteriores (poesia). Goiânia, A.S.A., 2003;
Uma poesia dialógica. nove resenhas da obra de Pedro Lyra (crítica literária). Fortaleza, UFC, 2003;
O poeta Coelho Vaz (conferência). Goiânia, Kelps, 2004;
70 poemas escolhidos. Petrópolis, Catedral das Letras, 2005.

NOTURNO
a Maria

No silêncio da noite vou formando
teu retrato, no silêncio da noite
modelando teus olhos, teus cabelos
entre os lençóis de sono que me envolvem.
Na meia claridade, maldesperto,
angustiado, insone, construindo
a arquitetura móvel de teus lábios
levanto-me, e estás sempre comigo.

Durante o dia e a qualquer
estamos lado a lado, vou compondo
a tua imagem (vento sobre nuvem),
lembrança amiga no trabalho duro;

E surges na agonia do crepúsculo
– e és a aurora inaugurando a noite.

FUI EU

Fui eu esse menino que me espia
– melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto –

no retrato que o tempo desafia.

Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa mudada em seu oposto.

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.

Fui eu; e da figura só ficou
o olhar desenganado na fumaça
em que a criança inteira se mudou.

QUARENTA ANOS
a Carlos Nejar

Sinto a velhice em mim oculta e rude
em meio ao sol e o riso da manhã,
nesse engano das horas, nessa vã
esperança de eterna juventude
que se desfaz de mim, e sou maçã
mordida, podre, e rio e não me ilude
esse carinho, essa algazarra. O alude
dentro de mim começa. Mesmo sã,
a estrutura se abala em sombra e ruga
e os caminhos só descem, pesa o fardo,
e entre cinzas de mim, alheio, ardo,
de um fogo já morrente em sua fuga.

Mesquinho embora, curvo e pungitivo
meu corpo vibra e se deseja vivo.

TANGO

Um tango me persegue desde a infância
no canto, no piano, na memória
e se me impõe à voz, timbrando vário
ao prolongar em mim a sua essência
nos dedos de meu pai sobre o teclado.
Não somente: transporta desde longo
tempo a escrita do pai, letra de tango
no papel sempre então visto e relido.
Um tango me persegue: sua marca
é o realejo crepuscular que sinto
na imaginação rodando lento
e quanto mais passado mais se acerca.
E letra e pai e som, tudo afinal
gira ao compasso do tango fanal.

CONSIDERAÇÃO SOBRE O TEMPO
a Autran Dourado

Existe o tempo em nós
ou nós é que o marcamos
para captar-lhe a foz
insensível das horas
e ao vento que nos ramos
se espalha e do invisível
extrai sua ração
de fome, de acendalha,
enquanto o corpo vai
durando e se acabando
e a morte em nós ou fora
agindo como câncer
desfaz toda a certeza
de amor e na falaz
carícia do momento
ao sol, à ventania,
deságua como chuva
nessa angústia sem termo
da lassidão do tempo
sem dono e sem crepúsculo
sem regra, imagem, música.

NEVOEIRO
a meu irmão

O verso agoniza
na folha.
Luz verdevermelha
continuamente.
A noite apodrece
em música.
Todos na sala
esperam.
A aurora há de vir.
Sem consolo.
Onde se (des)faz o amor
antigo?
Tudo foge. Tudo é
deserto.

ESMERALDINA

De onde veio essa moça que uma noite
encostou-se ao meu braço e toda feita
de sorrisos iluminou a rua,
conduziu nossos corpos ao delírio?
De onde veio a crioula, essa volúpia
de amar, a sede intérmina das ancas?
De bruços, ondulante, convidava
ao negro fogo sobre a cama aceso
e mergulho e me afundo e me desfaço
para viver somente aquele corpo.
Do artelho à nuca a língua vai trilhando
verde-negros vergeis, negra campina
desdobrando hemisférios que provocam
e atraem, e sou colhido no negrume
como ímã, reteso, adere ao ferro.
Ah momentos de síntese bravia:
o enlace claro-escuro vai compondo
uma só forma em luta…
ah negra negra
deixou-me como veio e nunca mais
revivi essa esplêndida nudez.

COMPOSIÇÃO

O samba-canção há tanto tempo ouvido
ressurge no rádio, desperta adolescência
e entre notas nostálgicas transporta
meu hoje ao ontem, e de fininho invade
essa camada de sepultos devaneios
e concede a esse eu maduro
toda a palpitação de estranho outrora,
impõe-se a mim, compõe-me o ser contraditório,
e essa melodia é toda uma experiência
que carrego comigo ou me reboca
via a fora, e uma própria maneira de senti-la
em sucessivas evocações sonoras
ou no silêncio em que fruo as notas idas.
(Como esses dias ressurgidos
com seu lastro de vida a desfazer-se
e esse íntimo carimbo que registra
para ninguém o que sou, serei e fui.)