Renovar esteticamente, no Brasil do início do século XX, significava, antes de mais nada, a procura mais aprofundada de nossas próprias raízes. Era preciso conhecer o Brasil para, numa linguagem própria, aprendida nos estudos daqui, modernizar a Literatura e as artes por meio de uma expressão que fora mascarada, sobretudo pelo formalismo parnasiano ou simbolista. O Parnasianismo exaltava um Brasil de valores distantes, idealizados, fora da realidade, por meio de símbolos patrióticos, não a maneira do povo verdadeiro. Símbolos patrióticos repetiam, e nas mesmas fórmulas acadêmicas, os ufanismos dos outros.
A diferença entre a adoração pela pátria em abstrato e o nacionalismo verdadeiramente representativo do que somos fica claro no final do poema “O poeta come amendoim” de Mário de Andrade :
Brasil amado não porque seja minha pátria.
Pátria é o acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der…
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos.
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Vinícius de Moraes, admirador e amigo de Mário de Andrade, escreverá mais tarde em seu poema “Pátria minha” :
…… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
O Modernismo procurou entrar na nossa realidade, desde as incursões entre os índios de um Rondon, até as visitas às cidades históricas mineiras de alguns intelectuais e as andanças pelo norte e nordeste, tudo anotando, do Mário de Andrade. No início do século XX, no mundo todo, as revoluções modernistas sacudiam esteticamente as artes e a Literatura. No Manifesto Futurista , por exemplo, Marinetti clamava pela nova época de mais velocidade e tumulto agressivo, dos carros e aviões. Entre nós, isto tinha de ser acrescido de outras novas percepções. Cada nação européia já tinha marcado suas características nas manifestações culturais. Nós precisávamos ainda elaborar a forma própria de representar costumes e lendas de um país agrário, improvisador do “jeitinho” como sobrevivência, recém-saído do escravismo, de convívio multirracial, e outras características como tais.
Não é que o Brasil tenha despertado de uma hora para outra para as artes e literatura. O Romantismo, logo após a independência, começa por procurar mitos indígenas para nos caracterizar. Gonçalves Dias chegou a colocar termos tupis em seus poemas, como a querer fazer mais presente nossa independência cultural. Mas, a sintaxe geral continuava bem portuguesa. A mesma coisa acontecendo com José de Alencar. E ambos dentro de um movimento literário de caráter acentuadamente europeu, o Romantismo. A imitação das correntes européias prosseguiu no Parnasianismo e Simbolismo do final do século XIX. Tais movimentos, que se antagonizaram na Europa, o primeiro com seu formalismo excessivo e o segundo com sua subjetividade musical, aqui entre nós prolongaram-se pelo princípio do século, quando lá já tinham morrido. E, o mais curioso aqui, quase se mesclando um no outro, numa espécie de manifestação eclética, como classifica Afrânio Coutinho em sua “Introdução à Literatura no Brasil” .
Tal ecletismo, apesar de uma visão distante de nossa realidade, conviveu com manifestações pré-modernas mais próximas do que somos. O hoje clássico “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, é um notável estudo de brasilidade. Mas, seu linguajar segue estreitamente um classicismo português distante de nós. É a época de um romancista como Coelho Neto, de preciosismos na escrita que a envelhecem para nós. Por outro lado, “Eu” de Augusto dos Anjos, ou os romances de Lima Barreto já prefiguram inovações e brasilidades, não sendo, entretanto, esteticamente, modernistas. Já outro pré-modernista, Monteiro Lobato, a par de sua preocupação com o desenvolvimento econômico do Brasil e da situação do homem brasileiro, talvez por influência da literatura em língua inglesa, usava de uma linguagem objetiva, simples, direta, num português mais coloquial, já brasileiro. Apesar de que, se seus dois livros de contos situa-o como regionalista, sua narrativa ainda está presa ao Realismo fin-de-siècle. E suas convicções são claramente passadistas como fica claro na crítica à exposição de Anita Malfati de pinturas impressionistas, que intitulou “Paranóia ou Mistificação?”. Assim, aliás, podiam ser vistas as manifestações artísticas e literárias da vanguarda européia, para quem não as acompanhava de perto. E de paranóicos ou mistificadores foram taxados nossos poetas que, a partir da revolucionária Semana de fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo, tornaram-se conhecidos como “modernistas”.
A revolução deles, no entanto, constituiu-se num marco divisor de nossas artes e Literatura. Em resumo, o que queriam era atualizar a visão estética de forma a enquadrá-la no século XX, com as preocupações do homem de seu tempo, e não mais com as repetições tornadas acadêmicas de um passado século XIX. A beleza exterior que se desejava foi substituída pela representação significativa de nossa percepção interior, que pode não ser obrigatoriamente bela, mas que procura a compreensão de algo palpável, real. E para isto era preciso encontrar uma forma de expressão que fosse condizente com a realidade brasileira. O certo na língua não era o que se importava da tradição portuguesa, mas sim o que se pratica aqui entre nós. A “língua certa do povo” sem macaquear a sintaxe lusíada, a que se refere Manuel Bandeira no poema “Evocação do Recife” .
Na ânsia de compreender seu mundo contemporâneo, dentro de uma perspectiva autenticamente brasileira, o verdadeiro líder do movimento modernista entre nós, Mário de Andrade, incorporou uma diversidade de conhecimentos, sendo poeta, contista, romancista, crítico literário e musical, pesquisador do folclore, e até da Medicina, conhecendo bem vários idiomas, professor de piano, correspondendo-se com intelectuais de todo o país, sobretudo com jovens que lhe mandavam as produções e ele lhes esmiuçava opiniões, lendo de tudo e vivendo com intensidade cada momento. Ele mesmo, num poema, confessa “Eu sou trezentos, trezentos e cinquenta”, terminando a estrofe com a alternativa brasileira de sua diversidade: “Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!”. Com a preocupação de dissipar algumas confusões que se estabeleciam no grande público sobre o significado do Modernismo, elaborou alguma teoria em forma de versos livres e prosaicos, no “Prefácio interessantíssimo”, nome que deu, por galhofa, ao prefácio do livro de poemas “Paulicéia desvairada”, e no texto, cujo nome também é galhofeiro, “A escrava que não é Isaura”. A galhofa, inclusive, faz parte do nosso movimento modernista. Era preciso tirar da Poesia aquele aspecto ensebado de seriedade meio besta, a pompa dos fraques e coletes. Era preciso despi-la de costumes antigos, importados dos lugares frios. Em outras palavras, dar-lhe roupas mais adequadas aos trópicos. Uma das manifestações neste sentido constituiu-se do que ficou conhecido como “poema-piada”, uma gracinha curta, exprimindo uma forma também de lirismo, só que com humor. O humor brasileiro.
Essencial no abrasileiramento modernista foi a escrita em versos livres, sem amarras com as inversões sintáticas, que sempre se usavam em prol da métrica, e tirando a rima obrigatória, que acabava levando ao uso de termos só para rimar, e o poema, por vezes, a um sentido forçado, quando não extremamente repetido, convencional. Antes de tudo, o modernismo procurou ser anti-convencional, e de uma sinceridade espontânea. Assim se buscava a manifestação mais de acordo com o povo brasileiro, sem o mascarar. Um lirismo despojado, sem a afetação dos românticos. Mário intitula um poema, por exemplo, de: “Amar sem ser amado, ora pinhões!” E é curioso o poema-piada em que começa parecendo uma declaração romântica, e inverte todo o sentido para o fim, num também comprometimento com características como o do clima de nossa terra: “Meu Deus como ela era branca!… / Como era parecida com a neve… / Porém não sei como é a neve, / Eu nunca vi a neve, / Eu não gosto da neve! // E eu não gostava dela…”.
A linha do nacionalismo modernista desdobrou-se em vários movimentos. A revista “Klaxon” surgiu em 1922 em São Paulo, seguindo-se outras tantas lá mesmo, no Rio, Belo Horizonte, Salvador, Cataguazes, etc, com textos de poesia, crítica e exposição de idéias modernistas. Na própria semana de arte moderna houve duas conferências no Theatro Municipal de São Paulo. A de Graça Aranha, que chegou a afirmar “O que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil.” A outra foi de Menotti del Picchia, que declarava “Assim nascerá uma arte genuinamente brasileira, filha do céu e da terra, do Homem e do mistério”. Graça Aranha ainda propôs, em 1924, na Academia Brasileira de Letras, de que fazia parte, que só fosse ali promovido concurso literário para poemas não parnasianos, árcades ou clássicos, e se ficção de assunto mitológico, somente os do “folclore” brasileiro, “tratado com espírito moderno”… O entusiasmo excedia.
Oswald de Andrade lançou em 1924 o “Manifesto Pau Brasil”, que começa com os dizeres: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. // O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.” O Centro Regionalista do Nordeste, do Recife é lançado em 1926 com programa relatado por Gilberto Freyre em livro de 1952, tendo por fim “desenvolver o sentimento de unidade do nordeste”. Em 1927 é publicado o “Manifesto do Grupo Verde de Cataguazes”, cujo nacionalismo se afirma “do lado oposto ao outro lado dos demais modernistas brasileiros e estrangeiros” – o que antecipa o cantado 50 anos depois no “tropicalismo” de Caetano Veloso do “avesso do avesso”… E nesta sucessão de movimentos, o nosso modernismo, aliás, criou, destruiu e recriou muitos aspectos controversos, na ânsia de sempre se renovar. Como extremista, o grupo de Cataguazes declarava: “Nós não sofremos a influência direta estrangeira. Todos nós fizemos questão de esquecer o francês.” Extremado também foi o “Manifesto Antropófago”, do Oswald de Andrade, que começava com a afirmação de que “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” E fazia o trocadilho famoso de nosso nacionalismo: “Tupy, or not tupy that is the question”. É datado como sendo do Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha. Em 1929, Menotti del Picchia, Plínio Salgado, Alfredo Elis e Cassiano Ricardo assinaram o “Manifesto do Verde-Almarelo da Escola da Anta (Nhengaçu Verde Amarelo)”, que declara que “Nosso nacionalismo é verdamarelo e tupi”.
O momento da aparição do modernismo equivaleu a um descobrimento cultural do Brasil. Abrangeu a música erudita, tendo Villa-Lobos à frente, as artes plásticas, sendo Di Cavalcanti um dos organizadores da famosa Semana, estudos sociológicos brasileiros como os de Gilberto Freire, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Hollanda… Politicamente, o levante dos tenentes de 22, a coluna Prestes, a revolução de 30 tentaram modificar o velho poder oligárquico dos conchavos de fazendeiros e corrupção das urnas, em prol de um Brasil mais moderno. O enfoque fortemente nacional de tudo isto, em Literatura, pode ser visto por três derivações nítidas. A primeira, na linha de Mário de Andrade, o da pesquisa e entendimento polivalente de nossa realidade iria caminhar a largos passos na grande criação, efetiva, de autores nacionais significativos. Em Poesia, ao lado dele estava, dentre outros, Manuel Bandeira. Foram seguidos por Jorge de Lima, a geração imediata de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, pouco depois a de Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, desaguando em 1945 num João Cabral de Mello Neto. Os regionalistas do romance, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, também seguiam a trilha da ambientação e linguagem brasileiras, como tão insistidas desde os primeiros modernistas, sendo alargada a visão de brasilidade, também na geração de 45, pela genialidade de João Guimarães Rosa.
Uma segunda corrente nacionalista, liderada por Oswald de Andrade, não procurava cientificidade e pesquisa, mas uma identificação anárquica pelos contrastes de nossa improvisação em face da tecnologia do primeiro mundo, nosso subdesenvolvimento encarado com humor e ironia, acentuando as características de um país tropical com reminiscências da civilização indígena, ainda da Idade da Pedra. Oswald de Andrade encara a nacionalidade pelo lado pitoresco das piadas inconsequentes, típicas de um gozador rico, “bon vivant”, viajando muito pela Europa, encarando a poesia um pouco como brincadeira… (“No baile da corte / Foi o Conde d’Eu quem disse / Pra Dona Benvinda / Que farinha do Suruí / Pinga de Parati / Fumo de Baependi / É come bebê pita e caí!” )
A terceira corrente nacionalista não estava para brincadeiras. Levando à última instância seu posicionamento “verdamarelo” Plínio Salgado entrou na política e fundou o fascismo daqui, o Partido Integralista, cuja saudação, “Anauê”, não poderia deixar de ser em tupi. E é por esta corrente que a intelectualidade formada após a tomada do poder pelos militares passou a temer todo e qualquer movimento em prol de nossa nacionalidade. De tal forma as gerações dos anos 60 e 70 se voltaram contra nossa realidade política, que quis se afastar daqui, internacionalizar-se antes de mais nada. Alguns chegaram a ver mesmo uma conivência entre o modernismo como um todo e a ditadura de Getúlio Vargas nos anos 30, com a evidência do nacionalismo ter sido a forte marca do fascismo italiano e do nazismo. Getúlio seria o Mussolini daqui, com nossos modernistas saudando-o, braços estendidos, com “Anauê”! Daí terem marcado que Mário de Andrade foi um dos idealizadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje IPHAN, Carlos Drummond de Andrade foi chefe de gabinete do ministro de Getúlio, Gustavo Capanema, que contratou modernistas como Oscar Niemeyer e Cândido Portinari na construção do primeiro prédio de características renovadoras da então modernidade no Rio de Janeiro, para ser o Ministério da Educação e Saúde. E ao Villa-Lobos foram dadas as condições de realizar seu sonho de incluir a Música na formação escolar. Como se as pessoas não pudessem trabalhar e viver em seu país quando este tem um governo ditatorial. Imagine se os alemães de hoje renegassem a obra bem germânica de Richard Strauss, mas internacional em seu sentido de modernidade, porque este não saiu da Alemanha hitlerista, e chegou até a ocupar um cargo público no princípio do governo nazista. Um cargo de músico, que ele não podia deixar de ser por causa da ideologia no poder! Ou imagine-se ainda, se outro compositor, Dimitri Shostakovitch, fosse taxado de aliado a Stálin por ter composto trilhas para filmes soviéticos e ter continuado a morar na União Soviética durante os crimes stalinistas. Sabe-se, aliás, o quanto ele sofreu e viveu atemorizado por isto! Mas, o lugar do artista, sua cultura, com língua, costumes, envolvimento social, têm muito a ver com sua obra. Não é uma ditadura do momento que vai obrigá-lo sempre a se afastar de suas origens, seu envolvimento com a atualidade, participação, em seu sentido de nacionalidade.
Mário de Andrade já parecia prever tais críticas mal colocadas quando escreve em carta a Joaquim Inojosa: “Veja bem, abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regionalismo nem mesmo nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia dirigem a Civilização da Terra, tem de concorrer pra esse concerto com sua parte pessoal, com o que o singulariza e individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e alargar a Civilização” .
E Mário foi além, no fim da vida, ao fazer sua autocrítica. Quando os alemães invadiram Paris ele estava escrevendo seu terceiro romance. Sentiu-se envergonhado por sua preocupação pela vida amorosa dos personagens que estava criando, quando o mundo vivia uma tragédia daquele porte. Interrompeu o romance. Percebeu que o tempo tornava a questão política prioritária. Lamentou o individualismo em que se pautara sua literatura. Individualismo que ele considerou ter tomado conta das artes desde o Renascimento. Era preciso que os escritores e artistas se voltassem mais para as questões sociais, políticas, coletivas, pois esta seria uma contribuição maior para a Humanidade . Ao escrever a “Concepção melodramática” a seu libreto de “O Café” (escrito para ser musicado por Francisco Mignoni), Mário de Andrade nos lega sua última posição modernista: “Eu tenho desejo de uma arte que, social sempre, tenha uma liberdade mais estética em que o homem possa criar a sua forma de belezas mais convertido aos sentimentos e justiças do tempo da paz.” Está implícito neste posicionamento ser fundamental a participação política na função artística. Mas, sem abdicar da arte inserir-se no contexto nacional, necessitando, assim, não fugir da sua vivência local.
Para terminar, algumas curiosidades. Os poemas de Mário de Andrade, como seu romance “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter” usam temas de todo o Brasil, como “Carnaval carioca”, “Noturno de Belo Horizonte”, “Toada do Pai-do-Mato”, “Acalanto do seringueiro”, “Moda da cadeia de Porto Alegre”, etc, mas o primeiro livro tipicamente modernista publicado no Brasil, seu “Paulicéia desvairada”, apesar de todo em versos livres, abre o primeiro poema com um decassílabo heróico: “São Paulo! comoção de minha vida…”, que inspira todo o livro, como se partindo de sua cidade, suas emoções pessoais, alcançasse a brasilidade e a naturalidade moderna e brasileira. O decassílabo talvez fosse por conta de, quando rapaz, ter seguido o sincretismo da época, parnasiano e simbolista, quando publicara o livro “Há uma gota de sangue em cada poema”. Aliás, também Manuel Bandeira, em “Itinerário de Passárgada” confessa ter tido dificuldade em deixar de metrificar seus versos, ele que publicara antes o simbolista “Cinza das horas”. E a fixação da cidade onde vivia, também é motivo do último livro de Poesia de Mário, “Lira paulistana”. Começou e terminou sua lírica por sua amada São Paulo. Como aqui termino, lendo deste livro o significativo poema de despedida:
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade
Saudade.
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade.
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas ao Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.